terça-feira, 20 de maio de 2014

Comer peixe-coelho pode provocar queriorreia


O título anterior está relacionado com o consumo de um grupo particular de peixes marinhos: os escolares. Vejamos então!

Ocorrência:
Um peixe-escolar apareceu à venda em 21-02-2014 na peixaria de um hipermercado da Madalena (da ilha do Pico). Como se tratava de um peixe um pouco diferente dos habituais escolares, foi observado com mais atenção. De facto, tratava-se de um peixe coelho-do-alto (foto 1), também conhecido como escolar-branco ou peixe-coelho (Promethichthys prometheus), com 3,9 kg de peso, que tinha sido apanhado na aurora desse dia pelos Srs Daniel e Bruno Freitas, a cerca de 130 braças de profundidade (~ 240 m), quando pescavam de gorazeira no Baixio da ponta este da Ilha do Pico (~3 milhas náuticas da costa). Este exemplar tinha 87,7 cm de comprimento standard (SL) e 93,6 cm de comprimento total, tratando-se de um exemplar de considerável dimensão para esta espécie, que pode chegar a ter 1 m de SL1. A contagem dos raios das barbatanas (ver tabela) integra-se nos limites indicados para esta espécie.

Foto 1- Peixe coelho-do-alto (Promethichthys prometheus) com 87,7 cm (SL) e 3,9 kg de peso apanhado em 21/04/2014 na ponta este da ilha do Pico (Açores).
Tabela
Contagem dos raios na barbatanas do peixe-coelho apanhado a 21/02/2014 na ponta este da ilha do Pico (Açores).

1º dorsal
2ª dorsal
Anal
Peitorais
Raios duros
18
2
2
0
Raios moles
0
18
15
14

Por observação das gónadas verificou-se que era uma fêmea, em estado de repouso reprodutivo – pós-postura (foto 2). No estômago só se encontrou o isco (pedaço de peixe espada branco). Verificou-se que as escamas apesar de visíveis não são facilmente destacáveis parecendo estar cobertas por uma membrana transparente.
Foto 2- Gónadas do mesmo peixe-coelho da foto 1, podendo ver-se que se trata de uma fêmea (A - vista geral das gónadas; B - pormenor do corte de uma das gónadas, vendo-se os tecidos internos com a aparência típica de pós-postura).  

Registos anteriores:
A ocorrência do peixe coelho-do-alto nos Açores está registada, pelo menos desde 19542, tendo o nome geral de escolar-branco para português3. Em inglês é designado por roudi escolar1, e chega a ter nomes mais populares de “butterfish”, “super white tuna”, “king tuna”, “oilfish” ou ainda como “white escolar”.
É uma espécie cosmopolita demersal que ocorre em todos os oceanos do mundo entre os 80 e 800 m de profundidade (meso-bentopelágico), em zonas temperadas e tropicais.
Ocorrem nos Açores mais 4 espécies de peixes conhecidos pelo nome comum de escolares: Ruvettus pretiosus; Lepidocybium flavobrunneum; Nesiarchus nasutus, e Gempylus serpens. Algumas destas espécies atingem tamanhos bastante maiores ao do coelho-do-alto.

Curiosidades:
Apesar do peixe coelho-do-alto ser comestível é preciso ter cuidado com o seu consumo. É um peixe gordo, extremamente delicioso quando grelhado, pelo que há a tentação de comer demais! O pior vem depois. Como o conteúdo oleoso advém de estéres-cerosos, que o peixe adquire das suas presa e não consegue metabolizar, acaba por as acumular no seu corpo (cerca de 23% do total). No homem estas substâncias não são absorvidas e acabam por provocar diarreias oleosas alaranjadas, que passam praticamente despercebidas, muitas vezes em ocasiões pouco convenientes. Este tipo de diarreia oleosa derivada do consumo destes peixes tem mesmo uma designação específica: queriorreia. Em vários países, este peixe foi considerado tóxico, em resultado destas consequências desagradáveis. Por outro lado, as substâncias cerosas são consideradas como gempilotoxinas, que se assemelham a óleos minerais, mas não são realmente toxinas.
Contudo, caso não se consuma com frequência, não mais de ~120 g de cada vez, e esteja bem grelhado para libertar grande parte da gordura, que não deve ser consumida, acaba por não trazer consequências de maior. De qualquer forma, o peixe coelho do alto parece ser “menos perigoso” em termos alimentares que outras espécies de escolares. 

Agradecimentos:
Aos Sr Daniel Freitas e Bruno Freitas pelas informações dadas relativas à pesca deste peixe. Igualmente se agradece ao Sr. Rui Pires, gerente da peixaria do hipermercado “Compre-Bem”, que amavelmente localizou a embarcação que tinha pescado este exemplar. Um agradecimento também à Dra Angêla Canha do DOP por ter analisado o estado de maturação das gónadas.

Referências:

  1.     Fishbase: www.fishbase.org/summary/5008
  2.        Santos, R.S., F.M. Porteiro & J.P. Barreiros, 1997. Marine fishes of the Azores: annotated checklist and bibliography. Bulletin of the University of Azores. Supplement 1. 244 p.
  3.        Sanches, J.G., 1989. Nomenclatura Portuguesa de organismos aquáticos (proposta para normalizaçao estatística). Publicaçoes avulsas do I.N.I.P. No. 14. 322 p.

Para saber mais: